O que ele mais queria

lua

Estava feito: Clarice acabara de dar a última estocada no pescoço de Joanna, espalhando mais sangue sobre o cadáver fresco do marido. Ela sabia do caso e decidiu chamar ambos para uma noite na mansão, para que parecesse refinada o bastante para encarar com sobriedade a traição do marido. Afinal ele sustentava todos seus caprichos desde que casaram há cinco anos, e, no mínimo, ela devia obediência a ele. Pelo menos era o que a sociedade imaginava naquele tempo. Era o que Edmund pensava.

A esposa havia dispensado os criados, ordenando-os para que não voltassem pois seriam realocados para outra das propriedades do casal. Para os dois desleais, mais uma manobra de quem deseja ocultar da sociedade a vergonha e manter as aparências.

No entanto estava feito, e na isolada mansão na montanha Edmund teve sua garganta cortada de um lado a outro enquanto dormia. A moça estava tão irada que após ter finalizado a degola, pegou as margens norte e sul da ferida e esticou-as para arrancar a cabeça com as próprias mãos. Desistiu – Edmund estava morto – e chamou Joanna com falso horror, como se o marido tivesse causado a ferida em si mesmo. Aproveitou-se do desespero da garota e cravou a lâmina no pescoço.

Ao som do corpo da menina se debatendo, Clarice viu em seu peito um pingente espelhado. “Bem o tipo de presente que esse canalha daria.”, pensou. Arrancou a joia peculiar do corpo e pôs em si, limpando o sangue com o polegar, para que refletisse no ornamento a luz das velas.

– Satisfeito agora, meu amor?! – virou-se, sacudindo o vestido branco que usava para dormir, agora quase que completamente escarlate. – Queria as duas? Agora não tem nenhuma seu desgraçado! – foi em direção ao corpo do marido e começou a estocar o peito mais algumas vezes – Me amava…mas…queria…outra?! – mudou a direção da faca, agora a rasgar – Queria… mais…do…que…todo o meu…amor?! – desatou a chorar e largou a faca ao lado, permanecendo montada no marido. Feliz e triste ao mesmo tempo, a posição levemente sexual a deixou excitada.

Era aproximadamente duas da manhã, e havia se passado algumas horas da carnificina. Clarice estava na sacada observando a lua minguante, o que deixava a floresta que cercava a mansão ainda mais escura. Fumava um charuto do marido enquanto pensava no que conversaram no quarto pouco antes de irem deitar-se:

“Minha querida, eu sei que é difícil para você essa situação, mas você tem que entender que a minha é igualmente complicada”, havia dito Edmund com certa ternura, e continuou:”Você é meu amor mas Joanna é a minha carne. Você sabe das nossas dificuldades desde nossa lua-de-mel.”

Clarice lembrou-se de sua bela dissimulação, quando convenceu o marido de que o compreendia. “Claro, meu amor. Eu sei que é culpa minha você não ter mais desejo por mim, e aceito sua decisão.”.

Ao lembrar, bateu várias vezes no parapeito até sangrar o punho. Esvaziou seus pulmões em um grito para o infinito das montanhas e árvores que a cercavam. Não havia mais carroça ou charrete. Morreria lá e estava feliz com isso: ir embora seria um alívio perfeito para sua frustração.

Acordou ao lado dos corpos pela manhã. Foi até a cozinha e preparou um chá com a lenha que havia já no forno. Quando pegou o bule notou que os cortes que havia feito ao bater contra a pedra na sacada haviam cicatrizado mas com um tom de pele bem mais escuro do que o dela. Passou em frente a um espelho e ajeitou seu penteado – já que não haviam criadas para fazer isso por ela. Tateou o couro cabeludo e sentiu um pequeno corte ainda aberto. Continuou com a ponta dos dedos e sentiu um aperto no peito quando a ferida fechou e abriu-se rapidamente, como uma piscadela. Correu até o espelho para olhar de perto e estava tão preocupada com aquela coisa que não percebeu o princípio de um dente surgindo em seu olho esquerdo.

Não conseguiu mexer muito na ferida por conta da ardência e o local não favorecia que ela fizesse uma melhor avaliação. “Já que vou morrer que seja por esse corte. Mais rápido do que a inanição.” Tentou sobrepujar seu instinto primal de sobrevivência, mas suava frio com tamanho nervosismo. Decidiu repousar no quarto de hóspedes por algumas horas, mas acabou adotando-o como quarto ao anoitecer – ao contrário do que planejara em seu momento de fúria: observar os corpos dos infiéis apodrecerem.

Era quase nove da noite e Clarice acordou de um longo cochilo ao som de uivos e corujares vindos da floresta. Pegou o lampião e desceu as escadarias atrás de um copo d’água: sua sede aumentara enormemente nas últimas horas; já havia tomado cerca de três litros de água e ainda sentia-se insaciada. Também estava com dores terríveis na pelve, e sentia uma protuberância ao toque na região da bexiga. “O que está acontecendo comigo?!”, pensou enquanto cambaleava pela escada. Um passo em falso foi suficiente para que rolasse vários degraus até bater com violência com a cabeça quando atingiu o chão, desfalecendo.

– Hmmrh…Hmmmrh… – não era Clarice fazendo o murmúrio, mas ele a acordou.

– Qu…quem está aí?! – gritou logo que abriu os olhos. – Ó meu Deus!!

Gritou quando viu sua perna direita torcida de uma maneira que parecia impossível, revelando seu fêmur e pedaços de músculo como resultado. Olhou a sua volta para encontrar quem havia murmurado, mas não conseguia direcionar a atenção a qualquer coisa senão as inúmeras dores pelo corpo. Tentou virar-se para pelo menos se arrastar, mas continuou de barriga para cima. Levou a mão direita à cabeça para limpar o sangue e viu claramente em sua palma um outro corte, mas este era bastante distinto, pois era uma vulva completamente formada. Gritou e tomou coragem para virar de bruços.

– Hmrmmmmmrr…Hmmrmmm… – mais uma vez ecoava pelo salão principal o lamento.

– Quem está aí?! Me ajude!! – urrou a plenos pulmões.

Fez tanta força que seus olhos arderam subitamente e nada mais conseguiu enxergar; os esfregou e sentiu na parte de baixo de ambos olhos uma arcada superior completa de dentes, enfileirados de maneira torpe.

– Meu Deus, meu Deus, o que é isso?! – gritou antes de um pular da órbita. Começou a sentir algo em suas costas, mas jamais poderia imaginar que suas costelas estavam quebrando e virando para o lado contrário. No escuro, Clarice somente sentia dores.

E ouvia. Ouvia o estalar de juntas, o quebrar de ossos e rompimento de tendões e órgãos; e aquele murmúrio incessante, que quase conseguia formar algumas palavras.

– Hmmmrmrmr…elee….hmmmele…. – saíam de uma boca rasgada – hmmele…qu….hrmquis… – era tarde para Clarice entender alguma coisa: passava por algo tão terrível que o corpo quase desligou-se. Quase, pois algo a impedia de morrer.

A última coisa que conseguiu agarrar antes de descobrir uma boca sem dentes se rasgando em sua nuca foi o pingente que havia tirado do corpo de Joanna, e lembrou-se da última frase que Edmund falara durante aquela conversa. Uma breve frase antes do silêncio encerrou sua última noite: “Eu queria que vocês fossem uma só pessoa.”

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